Vinte anos de percurso cumpridos em 2020, celebração arruinada pela pandemia que assolou o Mundo e com a qual, a princípio, não soube lidar. Até ao dia em que a mãe lhe disse “Põe-te fina”. Estancou a depressão e preparou o regresso: no dia 5, com um concerto, no CBB; em setembro, com o lançamento de um livro biográfico e, a fechar o ano, no Altice Arena. O percurso profissional, a maturidade e a maternidade, a força, os medos e as fragilidades de uma mulher otimista numa longa entrevista.

Mariza no Festival “Wine & Music Valley”, Porto Comercial de Cambres – Lamego. Foto: (José Carmo / Global Imagens)

Mariza tem uma inteligência rápida, escolhe bem as palavras, imprime expressividade a cada sílaba. Conhecemo-la: é alta, de traço forte, cabelo cortado rente à cabeça, movimentos livres, mãos muito esguias gesticulando, em coreografia. E aquela voz – Mariza descreve-a como se fosse um ente querido. Com vida própria. Nem a alergia e a dor de cabeça roubaram disposição e espontaneidade à entrevistada.

Como gosta de ser chamada?
Mariza, cantora.

Fadista é um nome redutor?
Fadista, digo e direi toda a vida porque foi assim que aprendi na Mouraria. No meu bairro, fadista é um elogio. Se cantando, fizermos com que alguém se arrepie ou passe por emoções mais fortes, na Mouraria, dizem-nos “Ah fadista”. Que alguém me o diga, se sentir que o mereço.

Canta porquê? Só pela voz que tem?
Estou a pagar uma promessa do meu pai, mas também tenho de ser sincera: ao contrário dos meus amigos, que queriam ser isto e aquilo, na infância e na adolescência, eu não queria ser nada. Não me lembro de desejar ser alguma cosia, em criança. Aliás, perguntava-me porquê. Porque é que todos os meus amigos queriam ser qualquer coisa e eu não.

Chegou a ter a resposta?
Não.

Que promessa paterna foi essa?
Antes de mim, os meus pais tiveram uma filha, a primeira filha, que morreu com três dias de vida. Foi, claro, uma tristeza enorme, tanto mais que durante muito tempo a minha mãe teve dificuldade em engravidar. Por isso, quando nasci, e eu nasci prematura, o meu pai entrou numa capela e prometeu que se eu sobrevivesse chamar-me-ia Mariza e seria cantora, em homenagem a Marisa Gata Mansa, uma artista brasileira [1938-2003] que admirava muito.

Nem cantora queria ser em miúda?
A música esteve sempre muito presente em minha casa, mas, não, não pensava ser cantora. Não era uma vontade.

Acabou por ser uma necessidade?
Sempre foi uma necessidade. Pensando bem, sempre comuniquei a cantar. Com dois, três, anos, se estava muito triste, cantava. Se estava muito feliz, cantava. E assim me expressava. Lembro-me de cantar toda a minha vida. Não me lembro de não cantar.

Mas consegue dizer o que tem a dizer, noutra forma de comunicação?
Não consigo, até mesmo com as pessoas de quem gosto. Quando tenho alguma coisa a dizer-lhes costumo mandar-lhes uma canção. “Ouve isto.”

Se não cantasse, seria outra pessoa?
Não me imagino sem cantar. Acho que nunca dei tantos concertos na Tasca do Chico como neste tempo de pandemia. Nas pequenas aberturas entre os períodos de confinamento, a Tasca passou a ser o meu coliseu. Ia para lá e cantava, cantava, cantava. Porque tinha de tirar o que estava cá dentro. Mas quer saber uma coisa? Em casa não canto. Nem no duche.

No seu caso, a sua voz não é uma boa companhia?
Não gosto de ouvir a minha voz. Quando canto, fecho os olhos e gosto muito que as palavras me levem. Mas mesmo em palco, não estou a ouvir-me. Estou a sentir-me. Quando canto relembro, revejo e revisito de formas muito diferentes as experiências de vida que, com a minha idade, já vou tendo. É por isso que não consigo cantar nada que não perceba, que não sinta.

Fale-me da sua voz como se falasse de uma pessoa.
Mas eu falo dela como de uma pessoa. A minha voz tem vida própria: fico doente e ela não. Fico rouca a falar, mas a cantar não. Fico constipada, mas a voz não. Farto-me de dizer que tem vida própria.

Tem noção da voz que tem?
Tenho noção de que tenho boa voz. Tenho noção de que é uma voz diferente. Tenho noção de que tenho uma voz que atinge tessituras altas, mesmo nunca tendo tido aulas de canto. Mas não tenho noção da voz que as pessoas ouvem.

Em que outra área se poderia afirmar com a mesmo reconhecimento?
Talvez na cozinha. A minha mãe é chef, chef à moda antiga, e eu cresci a ajudá-la, na taberna dos meus pais. Hoje, cozinho e gosto. Cozinhar é uma arte. Arte e amor. Ou seja, no fundo é muito parecido com cantar. Acho que gostaria de ter um espaço como foi o dos meus pais: pequeno e com clientes habituais.

Porque não tem?
Não tenho vida para isso. Tenho um filho e os concertos. Mas hei de ter.

Depois de tantos anos, o que é que sente antes de enfrentar o público?
Não existem concertos perfeitos, vozes perfeitas, músicas perfeitas, mas sempre que entro em palco, levo a determinação de ser o mais perfeita possível. Até porque eu tenho um lema: se é para fazer, que façamos bem. Por isso, subo ao palco cada vez mais nervosa, a acusar mais responsabilidade. Isto não é conversa, estou a ser muito sincera. Nas três, quatro primeiras canções, estou sempre super nervosa. As pessoas não percebem, mas estou gelada.

Medo da voz falhar?
Não, isso não. Medo de não conseguir entender quem me está a ouvir, medo de não conseguir criar a energia essencial à música: dar e receber.

Já lhe aconteceu não perceber quem tinha pela frente?
Há países mais difíceis, públicos mais tímidos. Não quer dizer que não estejam a gostar. Apenas não o sabem demonstrar. É preciso ir vendo e percebendo. Apenas sinto que se for por certo caminho, melhora. Por isso é que tenho toda a liberdade para mudar o concerto a qualquer momento.

Intuição?
Intuição que ganhei cantando muito em bares. A grande dificuldade de quem canta em bares é fazer com que lhe prestem atenção. As pessoas estão ali para tomar um café, conversar. A pessoa que está a cantar é invisível. Sempre tentei que percebessem que eu estava ali.

Como descreve o público português?
Público maravilhoso. Eu sou muito mimada. Na verdade, nunca fiz um concerto em Portugal que tivesse corrido mal.

E pelo Mundo, já algum correu mal?
Também não. [gargalhada]

Mestiçagem é a palavra a que mais recorre quando fala da sua própria música. Pode dizer-se que é o cimento do seu percurso?
Portugal é a minha casa, vim para cá com três anos. Não me imagino a viver longe daqui. É aqui que me entendo, me revejo, me sinto, é aqui que estão as minhas memórias. Mas tenho também outra casa, não é a casa mãe, mas é onde está a outra metade das minhas raízes. Eu sou mestiça, não há como fugir. E por mais que se diga que não, o fado é uma viagem mestiça. Muitos estrangeiros não sabem distinguir o fado da morna de Cabo Verde ou do chorinho brasileiro. Existe esta mistura fantástica que é a lusofonia, tão rica na música, na literatura, na gastronomia.

“Sou mestiça, não há como fugir.”
A minha avó é negra. A minha mãe é mais escura do que eu e tem uma pertença. Eu não tenho. Não me sinto nem branca nem negra. É como se vivesse no limbo. Na terra de ninguém. No lado negro, dizem que não sou negra e, do lado branco, dizem que não sou branca. Estou numa faixa que é uma terra de ninguém.

Os portugueses lidam bem com essa parte de nós?
Nos últimos dez, 15 anos, estamos mais abertos.

Lembra-se de como era quando chegou a Portugal, filha de um casamento misto?
Claro que já fui vítima de racismo. Eu e a minha mãe. Aliás, a minha mãe ainda hoje o é. Cresci na Mouraria, onde o meu pai era o branco que casou com a preta. A casa era a casa da preta, o restaurante era o restaurante da preta. Quando saía com a minha mãe, percebia que as pessoas nos olhavam de forma estranha. Sentávamo-nos numa pastelaria e ninguém nos vinha atender, mas, entretanto, serviam quem tinha chegado depois. Isso ainda hoje acontece à minha mãe. Como é possível existir este comportamento num país que teve colónias? A minha mãe conseguiu integrar-se e hoje é adorada na Mouraria. Mas, às vezes, provoco quem a cumprimenta: “Agora já não é a preta?”.

Agora é a mãe da Mariza.
Não sei se é por aí. Recentemente, fiz uma campanha publicitária a pensar no que a minha gente estava a passar com a covid. Lambadas e murros no estômago diários, sem entendermos o que nos estava a acontecer. Fiz aquilo com esse espírito, mas houve quem resolvesse olhar para o meu aspeto. Que estava com uma cara monstruosa, e que o mais certo era ser fruto de uma plástica. Bom, nem eu fiz uma plástica nem a critica foi outra coisa que pura maldade. A partir daí, não imagina o que passei e o que li. “Preta, volta para a tua cubata”, “Puta, volta para a tua terra”, “Pega na tua família de pretos e vai-te embora” – enfim, fui chamada de tudo e mais alguma coisa nas redes sociais.

É revoltante.
Só queria que aquilo desaparecesse. Ajudou muito a um princípio de depressão, porque ser atacada pela cor da pele dói. Sabe, há uns anos, numa das pouquíssimas vezes que abri a porta de casa a jornalistas, um deles pediu um copo de água à minha mãe, achando que era a empregada. Só percebeu quando eu a tratei por “Mamã”.

Chegou a Portugal em 1976, com três anos. Tem memórias de África?
Muitas e vivas. Tão vivas que a minha mãe as acha impossíveis. Numa das minhas viagens a Moçambique, fui a casa dos meus avós e soube indicar o caminho para o pombal. A minha avó ficou espantada. Tinha dois anos a última vez que estivera naquela casa.

Em 1990, tinha 17 anos. Como é que o fado se sobrepôs à pop e ao rock, Amália a Madonna?
Eu cresci na Mouraria e no meu bairro as senhoras limpavam a casa a ouvir discos de fado. Na minha, também. Na rádio, que estava sempre ligado, e no gira-discos. Mas o meu pai só ouvia fadistas homens. Ou seja, eu não conhecia Amália. Até que um dia, com 15 ou 16 anos, estava na Baixa – a Baixa era o quintal dos miúdos da Mouraria ­­- e de uma loja vem uma voz a cantar “Barco Negro”. Fiquei fascinada. Nunca tinha ouvido nada assim. Mas, na verdade, só procurei saber quem é Amália e o seu reportório já com 24 anos, quando comecei a cantar no Senhor Vinho.

O que têm em comum?
Nada.

Nesse caso, por que funciona tão bem, como comprova o disco Mariza canta Amália?
Isso não sei.Vivemos em épocas completamente diferentes e vidas muito diferentes, acho eu. Até opostas: eu sou mãe, ela não. Os sentimentos têm de ser, portanto, diferentes. Nem a voz acho parecida. O meu fascínio por Amália é o fascínio pela sua voz, pela forma brilhante como escrevia e por tudo aquilo que conseguiu trazer a uma história tão forte como é a do fado.

Nem na presença em palco encontra semelhanças?
Há muitas pessoas que dizem isso. Fui ver imagens e não acho. Amália, sendo pequena, tornava-se gigante. Vejo isso nela, mas não o vejo em mim. Gostava tanto de conseguir assistir a concerto meu como espectadora. Nunca conseguirei fazê-lo.

Nunca vê a gravação?
Mais para apontar o que não gosto do que outra coisa.

O que diria Amália de si e da sua voz?
Nunca fiz esse exercício.

Não quer fazer?
Sabe, nunca a conheci, nunca estive perto dela. Tenho uma pena enorme de nunca a ter visto em pessoa. Quando cantava no Senhor Vinho, dizia muitas vezes à Maria da Fé e à Maria Dilar: amanhã, vou bater à porta da D. Amália. “D. Amália, não me leve a mal e ensine-me qualquer coisa, eu tenho de saber cantar.” Elas riam-se. Nunca o fiz. Não sei mesmo o que ela poderia pensar de mim.

Mariza Sei que marquei o fado-portugal-camoestv

“Tenho necessidade de conversar com Deus todos os dias. Por vezes, à noite, muitas vezes durante o banho”, conta Mariza. Foto: Miguel Ângelo

Partilham a mesma fé em Deus.
Isso, sim. Rezo todos os dias. Tenho necessidade de conversar com Deus Todos os dias. Por vezes, à noite, muitas vezes durante o banho.

Amália tinha um lado sombrio.
Um fascínio grande pela morte. Da perceção que tenho do que Amália escrevia e cantava, acho que tinha um fascínio pela morte. Pela resposta à pergunta “quando acabar o que virá? O que será?”.

Com o nascimento do filho, a Mariza esteve perto da morte.
O drama maior foi ter estado perto de perder o meu filho. O horror que foi pensar que podia perder um filho. Mas também, claro, o medo de pensar no que seria dele se eu morresse. Hoje, lido com a morte, com a minha morte, com tranquilidade. Nada disto [aponta para as joias] vale. O que vale é o que somos e o que deixámos, em termos afetivos e de valores, aos nossos.

Há o Antes de Amália e o Depois de Amália. Pode dizer-se que há um AM e um DM?
Podem dizer que não, mas sei o que fiz. Aí puxo dos meus galões. Há 20 anos, não havia uma nova geração a tentar cantar fado. Nem gostavam. Não havia editoras interessadas em ter fadistas. Hoje, toda a gente canta e todas as editoras estão interessadas em fadistas. Há 20 anos, não existia uma forma diferente de vestir para cantar fado, não existiam roupagens novas. Foi todo um mundo que se começou a descobrir. Há 20 anos, a internacionalização existia com a Amália e com o Carlos. O meu querido e saudoso Carlos. Tantas saudades, meu Deus, nunca julguei que ia sentir tantas saudades dele. [comove-se] Falo dele e o meu coração aperta. Ai, são tantas as saudades de falar com ele, de lhe perguntar coisas. Até tenho vontade de chorar, ele faz-me tanta falta. Apreendi tanto, tanto, tanto com ele.

Era muito duro com a incompetência.
Muito. O que ele pedia que não cantassem na frente dele certas coisas.

Aprendi tanto com ele e com a Judite. Fiz com eles viagens tão giras, em que aprendi tanto. Viagens que juntavam também o Júlio Pomar e a mulher, a Teresa. Que saudades. O Carlos era o meu mestre. Foi dele o primeiro fado que cantei.

“Os Putos”.
Ensinava-me sem saber que me estava a ensinar. Nunca pensei sentir tantas saudades dele.

[Volta à resposta, depois de uma pausa longa]
A internacionalização, estava a dizer, começou com a Amália e com o Carlos. Depois, com o 25 de Abril, houve uma paragem. O fado voltou a viver muito dos seus bairros típicos e dos cantores mais populares e bairristas. Apareceram a Mísia e a Cristina Branco, mas era uma bolha. Surge o Camané, e a Mafalda Arnauth começa a ter algum nome. Era isto. Quando eu apareço, apareço com uma imagem muito própria e genuína – eu sou assim -, com a sorte de ter o João Rolo como amigo, e se eu gosto de trapos, parecendo que tudo tinha sido programado. De repente, tudo encaixava. Lembro-me que estava a fazer o meu primeiro disco para oferecer ao meu pai, sem qualquer outra intenção. Cantava no Senhor Vinho e num bar perto de casa, ganhava o meu dinheiro e era feliz. Eu acredito nas sinas.

Foi cantar à Holanda, a um espaço pequeno e de repente teve um disco editado em 32 países.
Foi a única exigência minha. O disco teria de sair primeiro em Portugal. Um dia, no carro, oiço “Ó gente da minha terra” na rádio. Comecei a chorar.

“Fado em Mim” saiu em 2001. Foi disco platina. Depressa chegou às 120 mil cópias, só em Portugal. Foi uma aposta de uma editora holandesa, a “World Connection”. Porquê?
Porque nenhuma editora discográfica portuguesa se mostrou interessada. “Fado não vende”, diziam.

Foi um disco muito aplaudido. Como é que recebe os comentários negativos?
A critica negativa ajuda a crescer mais de que a positiva. Faz-me parar para ver onde estive mal e onde errei. Obviamente, ninguém gosta. Se disser que a aceito muito bem, estou a mentir. Dói. Doi sempre. O que sempre me magoou, não por mim, mas em respeito pela sua memória, é que digam que sou a segunda Amália. A Amália é a Amália e eu sou eu.

O regresso ao fim de um ano. Como está a ser?
Muito suave, muito vagaroso. Antes da covid, fazia cerca de 90 a cem concertos anuais. Antes do meu filho nascer fazia 200. Em 2020, em que saiu “Mariza canta Amália”, tinha 120 concertos agendados. Ainda consegui fazer uns quatro antes dos confinamentos, mas na realidade há 16 meses que não trabalhamos. E isto é como um carro ou um atleta de alta competição – precisa de treino. Estávamos em ebulição, fomos obrigados a refrear de repente e ficámos sem saber o que fazer com a nossa energia.

Com danos emocionais e financeiros e artísticos.
Os danos financeiros foram brutais. Mas as pessoas levam-nos a mal quando falamos disso, como se o artista não comesse nem tivesse família.

A política respondeu aos artistas?
Não, não respondeu. Não estou a dizer que tivessem de dar-nos um subsídio, até porque somos um Estado pobre. Mas faltou uma palavra de alento. Um carinho.

A ajuda financeira faz todo o sentido.
Nunca recebi nada, e apesar de estar há 16 meses sem trabalhar, mas continuo a pagar o mesmo de Segurança Social e de débito por conta. Há muitos outros assim e situações piores. Pessoas que entregaram a casa ao banco e venderam o carro. Hipotecamos a vida.

E o custo emocional?
No princípio da pandemia, não consegui aceitar bem o facto de acordar e não ter perspetiva para o dia. Não me recordo de estar em casa tanto tempo. Dei atenção ao meu filho, é verdade, teve esse lado bom, mas para mim foi extremamente doloroso. O comboio parou e havia que ficar ali, sendo que a cabeça não estava programada para isso. Fiquei com um princípio de uma depressão, que o episodio com o vídeo publicitário agravou. Não conseguia falar e pensar. Chorava, com vontade de desaparecer. Como e que se vive isto? Como vou catalisar a minha energia para viver este momento? Não sabia o que fazer. Fiquei mal, tomei alguma medicação. Até ao dia a minha mãe disse “Isto tem de acabar. Põe-te fina. Estamos todos aqui, somos uma família. Estás mal, estamos todos mal. Estás bem, estamos todos bem. Para estarmos todos bem, tens de te animar”. Percebi que tinha de arribar. Olhei para o meu filho e arribei mesmo.

Como vai ser o concerto de dia 5?
No CCB é um retomar. As salas ainda estão a 40%, mas já se caminha para a normalidade. E é muito bom poder voltar a cantar. Vou passar por todos os temas. “Chuva”, “Quem me dera, “Barco Negro” e um ou dois temas do “Mariza canta Amália”. Em setembro, será lançado um livro sobre os meus 20 anos de percurso e, no final do ano, virá o concerto no Altice Arena. Estamos a pensar numa orquestra e apresentar o disco na íntegra. Já estamos a pensar no próximo.

Quanto tempo depois sente vontade de começar um novo disco?
Quando, ao cantar os temas, as emoções começam a ficar lá atrás.

Um livro autobiográfico?
O livro, que será editado pela Leya, é um resumo dos 20 anos do meu percurso, que deveriam ter sido celebrados em 2020 com um plano que a covid abortou. Mas também aborda as minhas origens, sobretudo a minha chegada a Lisboa, vinda de Moçambique.

Com os anos, nota que a voz tem mudado?
Mudou. Tenho hoje outra maturidade.

Como é que encara a maturidade? Os 47 anos?
Isso está na cabeça. Acho que parei nos 36. É evidente que, apesar da ginástica e de uma alimentação cuidada, já há coisas que me custa fazer. Já não consigo fazer cinco ou seis concertos seguidos, viajar todos os dias, dormir mal todos os dias. O organismo dá sinal. O que acho engraçado é que, apesar é ter 47 anos, ainda me tratam como uma miúda.

Para o que tem vindo a perder a paciência?
Aprendi a filtrar. Tudo o que não vale a pena, que me vai fazer mal, pessoas com quem não quero estar, sítios onde não quero ir. Não faço esforço. Já era assim, mas piorou.

É difícil trabalhar consigo?
É muito simples: como não falho com ninguém, não admito que falhem comigo. Raramente me zango e vou avisando as pessoas lentamente. Depois de me zangar, acabou.

Mariza Sei que marquei o fado-portugal-camoestv

Foto: Miguel Ângelo

Recentemente, várias mulheres portuguesas denunciaram casos de assédio. Passou por isso?
Nunca dei por nada. Nunca tive a imagem da sexy ou da gostosa do fado. Se aconteceu, não dei conta. Sinceramente.

É uma cuidadora.
Sou cuidadora, sim. Os meus pais vivem comigo o meu filho também. É um peso muito grande. Sou filha única e tenho a educação africana: os pais, no final, são nossos.

Não pode fazer da vida o que quer.
Não, não posso fazer da vida o que quero. Mas tem-se a vida possível. Há alturas em que dá vontade de largar tudo. “Não quero mais isto, quero ser livre.” Mas o amor é tão grande que olho para aquelas três pessoas e vejo três pedaços de mim. Não dá.

Queríamos os nossos pais iguais ao que eram quando tínhamos 15 anos.
Queria tanto. É extremamente difícil olhar para aqueles que amamos tanto e perceber que a linha está a chegar ao fim. [Comove-se]. O meu pai está a ficar extremamente frágil. Era um homem incrível e dói tanto ver a fragilidade de alguém que se ama. Há uns dias, a conversar com um terapeuta, falámos de momentos felizes. Um momento muito feliz. Pensei imediatamente neste: o meu pai na mota, comigo atrás, para irmos comer uma sandes de courato. Dava tudo para voltar a esse momento de felicidade.

Que acham os pais do percurso da filha?
Em minha casa, tanto aqui como em África, não sou a Mariza cantora. Sou a “Mariza, ajuda aí a pôr mesa” a “Mariza aqui e acolá”. A minha mãe só nota quando abre a porta e está comigo na rua.

Quando olha para os pais, onde se imagina quando tiver a idade deles?
Tenho vindo a fazer tudo, a preparar tudo, para que o meu filho não tenha de tomar conta de mim. Estará comigo sempre que quiser, iremos ver-nos sempre que ele puder, mas quero que não tenho sobre os ombros a tarefa de tomar conta de mim.

O Martim nasceu prematuramente, tal como a mãe.
Nasci prematura, mas eu sou dura na queda. [Gargalhada]. O meu filho nasceu exatamente com o problema pulmonar da minha irmã, que morreu com três dias. Hoje, felizmente, o problema está resolvido. Mas tem um défice de atenção. No primeiro confinamento, tinha ele oito anos, consegui perceber que o meu filho não sabia ler nem escrever. Fui aconselhada por uma amiga a falar com uma professora do Ensino Especial. Tive uma conversa com ele. Expliquei-lhe que iria contratar uma pessoa que viria a casa para estudar com ele. Mas que teria de se esforçar porque, sem o seu esforço, nada seria possível. Prometeu-me que sim. Tirei o Martim da escola particular, foi para uma escola pública, as escolas públicas têm um ensino fabuloso, complementado com aulas diárias em casa, com essa professora. Pois, seis meses depois o meu filho sabia ler e escrever. [Abre um sorriso]

De que modo a proximidade da morte e a possibilidade de perder um filho alteraram as suas interpretações? E que mudança provocaram em si?
Tornei-me uma pessoa diferente. As interpretações são diferentes porque existe o conhecimento de um amor que eu desconhecia. A minha música fala de amor. Despertei para um dos sentimentos que não conhecia. Quando recebo uma chamada de um número desconhecido, penso logo que é da escola. Há um sobressalto. Nunca mais se dorme da mesma maneira.

E quando está apaixonada, o que muda?
Nessas situações sou muito racional.

Racionalidade e paixão são contraditórios? É bom estar apaixonada?
É bom. Mas sou muito cerebral, no sentido em que tenho muito cuidado, observo muito, muito bem.

É desconfiada?
Muito desconfiada. Pondero muita coisa. Por exemplo, o que terá levado esta ou aquela pessoa a aproximar-se de mim.

Já aconteceu sentir que há um interesse escondido?
Já aconteceu. Acontece em todo o tipo de relações humanas.

Essa desconfiança pode ter a ver com falta de autoestima?
Nada. Gosto muito de mim, gosto daquilo que sou. Gosto da minha voz.

No poema que lhe dedica, e que a Mariza canta, Martim tenta retirar-lhe parte do peso de cuidar. Diz-lhe que vá, que pode ir, porque ele estará sempre consigo. Até porque um dia ele sairá do ninho e, entretanto, os anos vão passando. E a sociedade penaliza sobretudo as mulheres.
Sei que um dia ele irá. Espero que isso aconteça. As mulheres são penalizadas por tudo, mas não podemos deixar de amar e de cuidar dos nossos. A lei é assim: temos os filhos, criamos os filhos e depois eles voam. Ele fará e será o que quiser e eu terei muito orgulho, desde que ele seja feliz. Nós, mulheres, cá ficámos. No meu caso, a cantar e viajar, certa disto: quando uma artista envelhece, diz-se “Era tão gira, olha como ficou”. Se for homem, que está “muito charmoso”.

Depois do que já falámos, nem vale a pena perguntar qual foi a grande emoção da vida pessoal.
Sim, foi o nascimento do meu filho. A maior prova de amor que a vida me deu.

A vida tem sido boa para si?
A vida tem sido boa e muito generosa. Venho da Mouraria e fui da Mouraria para o Mundo. Com esta profissão tenho conseguido realizar os meus sonhos e o público tem sido muito generoso. Sou uma artista muito mimada. Há quedas na vida, claro, algumas dolorosas, mas servem para nos ensinarem. Adoro a minha vida, mesmo não sendo sempre fácil.

Quando está em casa, com tempo disponível, e põe um disco, quem ouve?
Nos últimos tempos HER (acrónimo de Having Everything Revealed). Mas o que oiço mesmo é rádio. O rádio está sempre ligado. É assim desde sempre. Durante a pandemia, com tanta notícia má, desliguei muitas vezes a televisão. Ouvia-se apenas rádio.

Qual é a coisa mais importante do Mundo?
O amor.

Tem noção de que é uma das mulheres portuguesas mais influentes?
Não tenho essa noção. Mas consigo perceber que a minha música e a minha voz influenciam a vida de muitas pessoas. Que faz parte da banda sonora da vida de muitas pessoas que não conheço nem virei a conhecer.

Sabe que pode ajudar muito a carreira de um principiante?
Sou muito parcimoniosa. Nunca me intrometo. Se me contactarem, sim, estou disponível para ajudar. Mas sou muito parcimoniosa.

Há um bom ambiente entre os artistas?
Dou-me muito bem com toda a gente. Não tenho problemas com ninguém mas sou muito reservada.

Quem a inspira?
O querido Carlos (do Carmo), que é o mestre, Jorge Palma e Barack Obama.

JN/MS

 

Mariza: “Sei que marquei o fado. Aí, puxo dos meus galões”